A capital da motosserra e desmatamento da Amazônia

A capital da motosserra

Como é a vida em São Félix do Xingu, o município recordista na derrubada de árvores no país

Localização do município de São Félix do Xingu, no Pará. Arte: Raphael Lorenzeto / GNU LicenseDuas das três imagens que se vêem no brasão de São Félix do Xingu, cidade paraense a 1 000 quilômetros de Belém, celebram o passado. Há um cocar caiapó, referência aos antigos habitantes. Uma bateia com ouro homenageia os garimpeiros que desbravaram a região. O terceiro elemento - um toco de árvore - pode ser interpretado como uma manifestação de princípios sobre a situação presente. São Félix lidera há sete anos o ranking nacional de desmatamento e, se depender da vontade da maioria dos moradores, o que resta de floresta vai abaixo quanto antes, abrindo espaço ao pasto necessário para a expansão do rebanho bovino. São Félix impressiona não apenas pelas dimensões da devastação – 15 000 quilômetros quadrados, área dez vezes maior que a cidade de São Paulo -, mas também pela velocidade com que desmata. Metade da área foi derrubada nos últimos sete anos. Nenhum outro município amazônico consegue destruir a natureza em ritmo tão acelerado. O segundo colocado no ranking do desmatamento, Paragominas, também no Pará, levou mais de trinta anos para devastar 8 500 quilômetros quadrados de floresta.

A explosão do desmatamento é conseqüência direta do avanço da agropecuária. O município é hoje dono do maior rebanho bovino do país. O número de cabeças de gado triplicou nos últimos oito anos. Foi de 680 000 em 2 000 para 1,7 milhão em 2007. Mas a riqueza derivada da atividade econômica não se reflete na cidade, com ruas esburacadas e. em sua maioria, sem calçamento. As tachadas das construções têm um aspecto empoeirado, tingidas pelo lamaçal nos tempos de chuva e pela poeira na estação seca. O comércio gira em tomo de produtos agropecuários e de uma infinidade de açougues. São Félix do Xingu é um lugar de superlativos. Sua área é a segunda maior do Brasil (só perde para Altamira, município do qual se desmembrou em 1961). Os 60 000 moradores espalham-se por um território 56 vezes superior ao disponível para os 10 milhões de paulistanos. No papel, com certidão passada em cartório, São Félix do Xingu é ainda maior. Com território um pouco menor que o do estado de Pernambuco, São Félix atribuiu títulos de propriedade a uma área do tamanho do Piauí. “Há casos em que pelo menos três pessoas se declaram donas da mesma gleba e cada uma delas tem escritura para sustentar sua reivindicação”, diz o advogado Luiz Bezerra da Silva, que dois anos atrás assumiu o cartório, depois de o estabelecimento sofrer intervenção do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Os interventores descobriram que o registro de imóveis da cidade funcionava como uma fábrica de títulos de posse frios. Em geral, a posse real da terra é de quem a ocupou primeiro. Os demais supostos donos usam o título como garantia para obter empréstimos ofi ciais. Como é de esperar numa região em que os títulos de propriedade são incertos, São Félix do Xingu é a campeã nacional em homicídios decorrentes de confl itos fundiários. Os assassinatos são feitos por justiceiros e pistoleiros que garantem a ocupação de terras públicas e a apropriação de recursos naturais, como a madeira.

Uma ausência chama atenção na cidade que mais desmata no Brasil: a do Ibama. A representação mais próxima do órgão federal responsável pela fi scalização ambiental está a 250 quilômetros dali. Ainda assim é apenas um escritório. Qualquer assunto relevante — como uma autorização para desmatar — deve ser tratado em Belém, a 1.000 quilômetros de distância. A construção de um prédio destinado a abrigar órgãos ambientais e a Polícia Federal está paralisada desde o ano passado, ainda nos alicerces. “A expansão desordenada da fronteira em São Félix do Xingu é um caso de omissão do estado na Amazônia”, diz Ima Vieira, diretora do Museu Paraense Emilio Goeldi. Há vinte anos ela se dedica ao estudo da expansão humana na região. Antes da chegada do gado, São Félix era o paraíso dos madeireiros. Com matas ricas em mogno, a cidade foi um importante pólo de produção de madeira. O madeireiro Adelar Giotto confessa que desde que se mudou do Rio Grande do Sul para o Pará, em 1987, jamais vendeu madeira inteiramente dentro da lei. “Sempre tentei legalizar meu negócio, mas nunca consegui.” Todos os pedidos de exploração da fl oresta feitos por Giotto foram rejeitados em razão da precariedade dos documentos de propriedade das terras nas quais seria realizada a exploração. “Por aqui, a coisa mais rara é título de terra regular”, lamenta.

Para ser legítima, a exploração de madeira precisa ser autorizada por órgãos ambientais. Essas licenças só são expedidas nas capitais. Para quem vive em São Félix, isso signifi ca percorrer distância similar à de Porto Alegre a São Paulo. “Conheço sujeitos que esperam quase dois anos pela licença”, diz Luiz Carlos Tremonte, presidente do Sindicato das Indústrias de Madeiras do Sudoeste do Pará. Para não deixar a serraria fechar, Giotto admite a compra de documentos emitidos pelo Ibama em nome de outras serrarias. O comércio de autorizações legítimas para desmatar é o mais comum dos dois principais tipos de fraude no negócio madeireiro. Em lugar de se dar ao trabalho de cortar e transportar as árvores, o madeireiro vende as guias para alguém que não conseguiu a autorização. A outra trapaça envolve funcionários dos órgãos ambientais que vendem as liberações diretamente a despachantes e madeireiros. Em qualquer caso, o resultado é que a floresta vem abaixo sem nenhum controle ou planejamento do governo.

Uma das razões para a explosão da pecuária naquela parte da Amazônia é o baixo preço da terra. Em média, 1 hectarede mata custa um décimo do preço vigente em regiões produtoras no sul do Pará e nos estados vizinhos de Mato Grosso e Goiás. Devido à boa distribuição das chuvas, as pastagens na região são viçosas o ano inteiro. Um boi ali chega ao ponto de abate um ano mais cedo que nas áreas de criação de Goiás. Não foi sem razão que tantos criadores venderam suas fazendas naquelas regiões e investiram na nova fronteira agrícola de São Félix do Xingu. Com o crescimento do rebanho bovino, extensas áreas de fl oresta foram convertidas em pastagens. “Não há melhor lugar no mundo para criar boi”, festeja o pecuarista Nédio Batista, que migrou de Goiás sete anos atrás. Hoje ele é dono de 500 cabeças de gado espalhadas por uma propriedade de 1.250 hectares, dos quais 80%, ele jura, conservam a mata original. Um em cada 3 hectares desmatados na Amazônia localiza-se no estado do Pará. No fi m do ano passado, a fl oresta paraense já tinha encolhido o equivalente a um estado do Paraná. Um quarto desse estrago se concentra em apenas sete cidades, todas elas incluídas no ranking dos dez municípios mais devastados.

Mesmo nessa fronteira selvagem há fazendeiros e pecuaristas respeitadores das normas de preservação ambiental. Em linhas gerais, isso significa conservar 80% da propriedade como uma reserva legal de floresta intacta. Evidentemente, não é fácil andar dentro da lei no clima de vale-tudo existente na fl oresta do Pará. Uma centena de quilômetros ao sul de São Félix do Xingu, a reserva legal de 2.600 hectares da Fazenda Vitória Régia foi saqueada por grupos de sem-terra, que levaram as madeiras de valor comercial. Há quase um ano esperando que o estado do Pará cumpra a ordem de reintegração de posse concedida pela Justiça, o fazendeiro Vitório Guimarães assistiu à destruição de sua reserva legal. “Que governo é esse que quer acabar com o desmatamento, mas não faz o menor esforço para garantir o cumprimento da lei e evitar a destruição da Amazônia?”, questiona Guimarães.

Um açougueiro que também vende terra

O açougueiro Adebaldo Ferreira de Araújo trocou Goiás pela Amazônia em 1999. Foi motorista de trator em Eldorado dos Carajás e puxou “correntão” para derrubar a floresta. Em 2001, mudou-se para São Félix do Xingu e garantiu a posse de 3 000 hectares de mata, onde hoje pastam 300 cabeças de gado. Araújo é também corretor de imóveis e dono de um açougue aberto noite e dia, onde o quilo de filé mignon custa a bagatela de 9 reais. Ele se queixa de que a cidade só aparece na imprensa como má notícia: “Já perdi a oportunidade de vender uma área por causa de reportagens negativas”. Assim como as terras que vende, o pedaço da Amazônia que Araújo chama de seu não é garantido por nenhum documento de propriedade.



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